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Jornalismo em realidade virtual enfrenta dilemas éticos

Produtores de documentários em VR criam guia de boas práticas para o jornalismo imersivo


1 de abril de 2016 - 20h53

Por Igor Ribeiro, editor do Meio & Mensagem

Entre as tecnologias em expansão acelerada que devem se tornar acessíveis em pouco tempo, a realidade virtual (VR) é a que está mais adiantada. Graças ao empenho de empresas como Google, Samsung, Facebook, Sony e Microsoft, em poucos anos, talvez meses, pode se tornar comum colocar um headset e viajar junto com os apresentadores de um programa de turismo; participar à distância da plateia de um programa de auditório e até acompanhar de perto a notícia de um conflito com manifestantes sem correr o risco de levar uma bala de borracha.

Ferramentas de VR foram destaque no SXSW – num crescente de edições anteriores –, mas pela primeira vez se acentuou o debate sobre o uso de dispositivos para o uso jornalístico. O embalo é sintoma, principalmente, pela parceria desenvolvida entre The New York Times, Google e o cineasta Chris Milk. O jornal distribuiu a assinantes, em outubro do ano passado, um milhão de óculos Cardboard para poderem assistir ao documentário em VR The Displaced.

Chris foi um dos painelistas do track de VR do SXSW, compartilhando suas experiências com a tecnologia, que além do NYT e do Google incluíram as Nações Unidas, a Apple, a Vice News e o diretor Spike Jonze, além de artistas como U2, Norah Jones e Arcade Fire. Em sua visão, enquanto estiver em desenvolvimento e experimentação, fornecendo novas possibilidades narrativas para o público, não há implicações éticas sérias que devam ser levadas em consideração sobre realidade virtual. “Tecnologia não é má. Tecnologia é tecnologia. Uma caneta é um pedaço de tecnologia. Cartas de ódio foram escritas com canetas, mas também cartas de amor. É o que fazemos com tecnologia que importa”, afirmou à revista SXSWorld.

Quem também realizou um painel sobre VR em Austin, com longas filas e plateia lotada em um dos auditórios de cinema, foi Ricardo Laganaro, diretor de cinema e especialista de conteúdo imersivo da O2. Ele esteve no SXSW a convite do cineasta Gabo Arora, compartilhando iniciativas como o clipe O Farol, o primeiro em 360° no Brasil; uma série documental, também em 360°, para a São Paulo Fashion Week; e o filme em VR sobre a história da humanidade que realizou para o Museu do Amanhã. “Talvez seja o zeitgeist favorável. O fato é que temos trabalhado com VR há mais de três anos”, explica Janaina Augustin, diretora do núcleo de inovação da O2.

Outro projeto brasileiro estreia nesta segunda-feira, 4, no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo. Trata-se do curta Rio de Lama, documentário em realidade virtual que traz o relato de sobreviventes da tragédia ambiental de Mariana (MG). Dirigido por Tadeu Jungle e produzido por Academia de Filmes, Beenoculus e Maria Fainha.

Antes ainda de The Displaced e de Rio de Lama, Nonny de la Peña é uma das pioneiras em compartilhar conteúdo noticioso em realidade virtual ou, como a própria define, jornalismo imersivo. Ela é fundadora e CEO do Emblematic Group e já realizou trabalhos em audiovisual 4D, VR ou 360° para empresas como BBC, NYT, Wired, Al Jazeera e Vice. Nonny também realizou um painel no SXSW sobre seus trabalhos e abordou implicações éticas na convergência entre narrativa em realidade virtual e jornalismo. Sua empresa foi contemplada com uma bolsa de US$ 580 mil do Knight Foundation para realizar pelo menos três documentários e apresentar um documento regulatório de melhores práticas para jornalismo imersivo. Leia na entrevista a seguir as impressões da CEO sobre esses temas e leia mais reportagens sobre realidade virtual e sobre ética na tecnologia na edição 1704 de Meio & Mensagem, de 4 de abril.

Nonny de la Peña

Nonny de la Peña

M&M – Como está o projeto em parceria com a Frontline e financiado pela Knight Foundation, tanto no que diz respeito à produção quanto à criação do guia de melhores práticas para jornalismo imersivo?
Nonny de la Peña – O projeto está engatilhado para o grande início. Lançamos o processo com um tipo de encontro, na Universade de Columbia, com um grande grupo de produtores estabelecidos da Frontline, junto a alguns desenvolvedores de VR. A Emblematic fez uma apresentação sobre o atual status do VR, os prós e os contras do 360° contra o vídeo volumétrico, a experiência de “dar uma volta”; e várias questões éticas e jornalísticas envolvidas no produção do tipo de atividade em que nos especializamos. Esperávamos ter uma audiência cética, uma vez que era um grupo que trabalhava segundo os mais rigorosos padrões em termos do que pode ser considerado apropriado para um documentário funcionar. Mas tivemos uma ótima receptividade. Pareceu que um monte de produtores se interessaram! Agora estamos trabalhando em nossa primeira colaboração. Ainda não posso compartilhar informações, infelizmente, a não ser dizer que estamos usando algumas técnicas muito inovadoras para captação de conteúdo que achamos que vai realmente trazer o trabalho à vida.

Diversos painéis no SXSW discutiram como o desenvolvimento de tecnologia está se deslocando do “QUEM” e “COMO” para o “POR QUÊ”. É fato que coisas maravilhosas estarão disponíveis ainda antes do que esperávamos, mas há o início de um debate a respeito de gatilhos de segurança e tecnologias de opt out. É algo que também te preocupa?
Sempre nos preocupamos em preparar os usuários, fornecendo a eles algum senso de contexto antes de eles assistirem a algum de nossos trabalhos. E até recentemente nós só mostramos nossas obras em festivais e eventos nos quais poderíamos ativamente andar entre a plateia e explicar a experiência. Claro que agora isso está mudando, uma vez que essas obras têm sido distribuídas por diversos canais digitais novos. Por exemplo, com Kiya, o trabalho sobre violência doméstica que o New York Times selecionou como parte de seu programa em Sundance, trabalhamos com ele para descrever um alerta de conteúdo, que aparece no headset antes da obra começar. Então quando você baixa via aplicativo NYT VR e começa a assistir, você sabe de cara que está prestes a assistir a alguma coisa intensa e, possivelmente, perturbadora, então você decide se deseja parar e tirar o headset.

Uma das principais preocupações a respeito de jornalismo imersivo seria a linha tênue entre a licença artística e os fatos. Você comentou que a intenção de VR é contribuir mais com a narrativa do que simplesmente comunicar uma notícia. À parte disso, quais são os alertas necessários para acompanhar esse conteúdo, como se faz no caso de propaganda, por exemplo?
Quando produzimos um trabalho, sempre nos perguntamos: isso é uma representação fiel da realidade? Nós distorcemos a realidade na tentativa de descrevê-la ou recriá-la? O que é apropriado mostrar e o que não deveria aparecer? Estamos pensando muito nessas questões e tentando definir quais são as melhores práticas nesse meio, com cada obra. Por exemplo, fizemos dois trabalhos em que a trilha sonora são áudios de verdade de chamadas para o 911 (telefone de emergência para ocorrências policiais nos Estados Unidos). Uma delas era uma ligação da noite em que Trayvon Martin foi morto a tiros (na Flórida, em fevereiro de 2012), e outro, Kiya, que eu já mencionei, documenta um homicídio decorrente de violência doméstica na Carolina do Sul. Em ambos os casos tivemos extremo cuidado em não inventar nada que não sabíamos se tinha acontecido e apenas ser guiado pelo áudio factual como um elemento objetivo. No começo de Kiya, por exemplo, há uma legenda que relata o que compôs a obra: as chamadas do 911, a recreação digital das fotografias dos locais, os movimentos das pessoas baseados em descrições de múltiplas testemunhas etc.

Cena do documentário sobre Trayvon Martin (Divulgação)

Cena do documentário sobre Trayvon Martin (Divulgação)

Você acredita que esse tipo de reportagem pode trazer de volta ao jornalismo uma audiência que vinha preferindo investir seu tempo em entretenimento e mídias sociais?
Certamente VR tem a habilidade de fazer você se sentir presente numa cena de um modo que nenhum outro meio consegue. E isso pode gerar uma empatia intensa da parte da audiência, por meio das cenas e dos personagens mostrados. Então, sim, quando usada adequadamente, pode certamente ser uma forma nova e mais poderosa de engajar o público em conteúdo jornalístico. E também é, eu espero, uma forma de atingir uma audiência mais jovem num espaço onde eles já se sentem confortáveis. Garotos que já compartilharam a experiência de jogar em ambientes como Minecraft estarão naturalmente inclinado a absorver informação dessa forma mais imersiva.

A íntegra desta reportagem está publicada na edição 1704, de 4 de abril, exclusivamente para assinantes do Meio & Mensagem, disponível nas versões impressa e para tablets iOS e Android.

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