Mire na imprensa, acerte a democracia
Plataformas devem ser responsabilizadas por distribuírem desinformação e são, junto com os governos, os maiores obstáculos para o jornalismo independente, afirma a ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, Maria Ressa
Plataformas devem ser responsabilizadas por distribuírem desinformação e são, junto com os governos, os maiores obstáculos para o jornalismo independente, afirma a ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, Maria Ressa
Jonas Furtado
16 de março de 2022 - 9h56
Uma das últimas atrações a serem confirmadas no line up das estrelas do South by Southwest, a co-founder do Rappler, Maria Ressa foi impedida de viajar para Austin para sua apresentação. Ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 2021, a jornalista filipina abriu a sessão que contou com a sua participação remota revelando como o governo de seu país usou a máquina burocrática para atrasar a entrega da permissão para que fosse ao exterior – que ela precisa renovar toda vez que viaja internacionalmente. Ela chegou a ir ao aeroporto na expectativa de conseguir embarcar, mas não foi possível – a autorização chegaria horas mais tarde, quando já não havia tempo hábil para se deslocar até Austin.
A conversa contou com a participação do membro do Agora Institute Johns Hopkins University, Pete Pomerantsev, jornalista nascido na Ucrânia e que trouxe as práticas e malefícios da desinformação para a cobertura da invasão russa a seu país natal. Ao longo de uma hora, Maria Ressa culpou governos e as plataformas proprietárias das redes sociais como grandes responsáveis pela disseminação de notícias falsas que ajudam a promover e a perpetuar políticos com vieses autoritários no poder.
A VERDADE SOB ATAQUE
Em meio a toda essa polarização, não diria que é a hora de se optar por um dos lados, mas sim de optar pelos fatos. O que a indústria da desinformação faz, intencionalmente e estruturalmente, é criar um viés contra os fatos, contra as verdades. Não é por acaso que o jornalismo está sob ataque. Eles manipulam as informações pois sem os fatos não se pode ter a verdade. Sem a verdade, não há confiança. Sem confiança, não há democracia. Há diversos países que terão eleições este ano, não somente a Filipina, mas o Brasil, Quênia, França, Sudão, Estados Unidos. Receio que não estejamos fazendo o possível para proteger os fatos, para proteger os jornalistas.
PLATAFORMAS DEVEM RESPONSÁVEIS PELO QUE EXIBEM
A desinformação trocada entre vizinhos não afeta a sociedade. Mas quando é distribuída em grande escala da maneira como é hoje, as pessoas passam a acreditar. Essa é uma escolha das plataformas. E eles fazem essas escolhas para ganhar mais dinheiro. Eles fingem que não são responsáveis pelo conteúdo publicado em suas plataformas, mas são eles que fazem toda a distribuição desse conteúdo. Essa distribuição em escala é determinada pela escolha deles quanto a princípios e algoritmos. Os veículos perderam o poder da distribuição do conteúdo. As plataformas de tecnologia assumiram esse poder, mas abriram mão da responsabilidade de proteger valores públicos, como a democracia e o jornalismo. Outro grupo que negligencia ações dentro se sua responsabilidade de proteger o público são os governos, que se aproveitam desses sistemas para vigiar os cidadãos.
DISTRIBUIÇÃO DE CONTEÚDO ENVOLVE ESCOLHAS EDITORIAIS
Plataformas não são neutras, não são infraestrutura. Eles não são somente o telefone, porque eles na verdade colocam seus dedos no telefone. Tomam decisões editoriais o tempo todo, em grande escala. E as escolhas que fazem estão codificadas em algoritmos. Pode se escolher a definição de algoritmo, com uma arma de destruição em massa, ou uma opinião enviesada codificada. E são as máquinas que fazem esse trabalho editorial, em vez de uma pessoa, para que a velocidade com que esse trabalho é feito seja multiplicada por milhões. O que você recebe no seu feed é uma escolha, feita a partir de códigos. É algo personalizado para você. E esse dano é feito em escala.
TECNOLOGIA, JORNALISMO E COMUNIDADE
Temos três pilares para proteger a democracia nos dias de hoje: tech, jornalismo e comunidade. Nesse novo mundo, para o qual coloco como um marco 2017, 2018, temos tentado construir nossa própria tecnologia. Tem sido difícil porque tecnologia é algo caro. No pilar do jornalismo, temos tentado ajudar a mídia independente a sobreviver. O modelo financiado por publicidade está comprometido, pelas mesmas plataformas que atacam a nós e a nossa credibilidade. Elas estão matando o jornalismo, matando as notícias. Por meio do Fundo pela Mídia de Interesse Público, estamos tentando ampliar o valor destinado ao jornalismo independente para 1% de toda os recursos da Assistência para o Desenvolvimento Internacional (ODA), chegando a um bilhão de dólares anuais. Hoje, esse índice é de 0,3%. Não é somente os jornalistas que estão sob ataque, somos todos nós. Isso leva ao terceiro pilar, que é a comunidade. É sob essa abordagem que estamos encarando as eleições nas Filipinas: colaborando, colaborando, colaborando. Estamos construindo uma grande comunidade ativa que tentará defender os fatos, contando inclusive com advogados voluntários. Há uma lacuna do exercício da lei no mundo cibernético, é como se as regras de balanços e freios do mundo físico não se apliquem ao virtual.
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