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“Keep it Weird” para quem? Em histórias dissidentes, estranho sempre foi uma constante

Os desafios pessoais e coletivos da retomada presencial do SXSW


9 de março de 2022 - 6h00

Crédito: Shutterstock

Eu era um universitário bolsista em 2009 quando ouvi falar do South by Southwest pela primeira vez. Apesar da abrupta transformação que vivia – sair da casa dos avós para ser o primeiro universitário da família -, não há acesso estrutural que consiga de forma imediata remediar anos de déficit de referências. Uma das maiores consequências desse abismo de representatividades é a dificuldade de construção de ambições individuais, além do constante senso de deslocamento. Logo, não havia circunstâncias para construção de desejo ou planos para o SXSW. A luta e o corre eram outros.

Foi nessa época em que tive conhecimento do que era o “Meio & Mensagem” e do que sua chancela representava. Me lembro inclusive de construir uma fantasia silenciosa – que só ousava acessar nos dias mais ensolarados, e hoje compartilho com você – de ter meu nome citado em alguma linha do impresso até o fim da minha carreira (spoiler: missão cumprida).

Nesse mesmo período, me recordo de estudar sobre as empresas brasileiras que mais moviam os ponteiros do mercado, daí entendi pela primeira vez o valor e o impacto social da Ambev… Não que isso me afetasse muito, afinal “dificilmente eu chegaria lá”, diziam as vozes na cabeça. Eram tempos em que o mercado não praticava políticas de atração de profissionais como eu: negro, LGBTQIA+ e com origem de baixa renda. Tampouco as mídias e grandes veículos destacavam nomes plurais. Em um tweet: não se identificar em lugar algum.

Corte seco para 2022, algumas árduas conquistas individuais e coletivas neste meio tempo, me deparo então com essa curiosa e tríplice agenda: ter o papel de liderança em uma das maiores empresas do Brasil, cobrir o maior festival de inovação do mundo e ainda poder dividir minhas percepções como correspondente em um dos canais mais relevantes da publicidade nacional.

Não poderia haver cobertura sem esse prólogo, afinal, em tempo onde todas macrotendências apontam para a humanização, decidi colocar algumas dessas cartas na mesa. Nossa história define a percepção da realidade e contextualiza o outro perante as nossas conquistas. Acima de tudo, o quão especial teria sido, aos vinte e poucos, ouvir de alguém com trinta e tantos que é possível chegar aqui?

Caso você tenha trajetória ou perspectiva similar, provavelmente vai concordar que nos carimbam frequentemente com “Weird” (estranho) na testa antes mesmo de a conversa começar. Às vezes vem um caricato “Ma-ra-vi-lho-so!” (para quem deixa sua orientação sexual explícita); ou aquela mão que caminha agilmente em direção aos seus cabelos sem pedir licença (para quem tem cabelos negres). Em cenários ainda tão homogêneos e historicamente excludentes, não há como disfarçar o fato de ser um outsider, mesmo com as recentes faíscas de transformação.

O SXSW se autoproclama um grande palco de estranhezas — “Keep It Weird” ou “continue estranho” é o lema central do evento. Se a intenção for promover a tão desejada inovação a partir do contraste de referências, certos estão. Mas será que o estranho deles é o mesmo que o meu? Seria eu o estranho? Estranho como e para quem?

Prestes a embarcar em uma agenda intensa, com dezenas de acontecimentos simultâneos durante dezena de dias, já começo os exercícios de respiração para não deixar que o medo de perder algo me devore. Me percebo confiante em encontrar novos ingredientes para o pensamento, e esperançoso com o que a minha ida representa. Meu principal radar de busca serão trilhas de conteúdo que apresentem proposições consistentes, a partir de reais histórias, e que entrelacem tecnologia, cultura, antropologia, ética, estratégia e arte de modo interdisciplinar e circular. O formato final das ideias e projetos me interessa menos; o “como” do processo criativo e do embasamento social é a minha prioridade. Não cito diversidade e inclusão por confiar que virão como base e abordagem de quaisquer temáticas, de modo transversal. A curadoria de painelistas e palestrantes também definirá minha presença nos auditórios: espero um SXSW que nos apresente a novos nomes negros, femininos, LGBTQIA+, neurodiversos e todas as perspectivas possíveis.

Pensar cultura, criatividade e inovação às margens do rio Colorado será uma tarefa difícil em 2022. Primeiro, por conta do tão esperado início do fim de uma pandemia e sua subsequente ampliação de abismos socioeconômicos. Segundo, por uma guerra injustificável. E é nesse cenário que grandes empresas e organismos globais finalmente se colocam dispostos a apresentar novos representantes. Para além de ideias interessantes, circuitos e sinapses, nosso desafio é ampliar oportunidades, gerar outros tratados, enaltecer novos protagonistas, escutar e conectar pessoas.

Fica aqui o desejo de que o “estranho” não gere o pejorativo estranhamento; de que a noção de “excêntrico” não seja pano de fundo para apropriações; e de que possamos celebrar a qualidade “extra-ordinária” da criatividade. Tudo isso em uma agenda que já poderia ser viável há mais anos, mas que só agora se torna acessível para alguns de nós — orgulhosamente estranhos. Que portas e janelas continuem a se abrir, já que inovar com vento corrente será mais fácil para todos. Nos vemos em Austin.

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